Como ativista do Movimento Negro, sempre discuti com outros militantes a questão do quanto o racismo era perverso, na medida em que convencia os próprios negros de sua fragilidade, sua desonestidade, sua burrice, sua incapacidade, enfim, o quanto nossa falta de auto-estima nos fazia enchergar os iguais a nós como tudo que nós não queríamos ser. Resultado: nós nos convencíamos que o racismo não existia, e que ´nós negros é que éramos tudo isso escrito acima, e até coisas piores, e que, por isso, tínhamos de deixar de nos fazer de vítima, afinal, quem quer, vence!
Vi negras e negros repetindo estas asneiras minha vida inteira, e ficava muito triste, porque, estes, invariavelmente, acabavam se dando muito mal na vida tempos depois. Inofensivos, faziam o jogo dos racistas e, depois, acontecia o óbvio, o racismo o jogava fora, doente, sem estudos, banguelo, sozinho, as vezes viciado, desempregado, cheio de filhos... Até os economicamente bem-sucedidos, as exceções as regras da exclusão e que eram usados pelo racismo como exemplos do sucesso da "democracia racial", ao fim, estavam com grana, mas sozinhos, longe de suas raízes, de suas origens, inserido em famílias que não parecem com as suas, ouvindo músicas que não são as suas, vestindo grifes famosas que não embalam quem ele realmente é, e sim, o que o "sinhozinho" queria que ele parecesse...
Na época da escravidão, existiam dois grupos principais de escravos: os da senzala, que trabalhavam duro nas lavouras, se alimentavam muito mal, se vestiam com trapos e, como o nome define, dormiam na senzala; e existiam os escravos da Casa Grande, que, por conviverem com o sinhozinho, sua família e seus convidados, vestiam roupas melhores, comiam os restos da cozinha do sinhozinho, portanto, comida de melhor qualidade, e, por fazerem trabalhos domésticos, e não braçais, tinham uma carga de trabalho mais leve. Ambos os grupos eram escravos, não tinham sua liberdade, sua dignidade e nem mesmo sua humanidade reconhecida por ninguém. Porém, os escravos da Casa Grande se achavam melhores do que os da senzala... Como se o fato de comer e vestir melhor os transformasse em outro tipo de ser... Qualquer conversa sobre rebelião, fuga ou abolição era prontamente rechaçada por boa parte desses escravos, afinal, para eles, aquilo era o melhor que eles (os negros) conseguiriam. Pensar pequeno e de forma materialista... Vamos viver do que o branco nos der. Vamos fazer de tudo para que o branco fique feliz e satisfeito conosco. Não vamos ser como os neguinho revoltado, que se faz de vítima, de coitado, é só trabalhar direitinho que a gente também tem lugar ao sol.
O século XXI nos traz os nego da Casa Grande da era digital. Reality shows, campos de futebol, showbizz, a mídia, enfim, um leque de irmãs e irmãos que se venderam pela roupinha melhor e os restos do sinhozinho, vendendo sua liberdade, sua integridade, sua humanidade. Vamos continuar sendo engraçados, compreensivos e carinhosos, ou seja, domados, inofensivos.
Irmãs, irmãos, vamos ficar atentos. Nada é por acaso. A mesma mídia que diz que baile funk é um antro de criminosos, promíscuos e viciados, diz que pagodeiro é brega e de mau gosto, promove uma música que une Mr. Catra e Alexandre Pires numa música que reforça a analogia do negro com o macaco. É a mesma que se aproveita da audiência do BBB pra usar um negro pra falar mal das cotas.
Estamos de olho, como diz o KL-Jay, as ruas estão olhando hein...
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